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25 de Abril de 2024
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    Artigo:

    Publicado por OAB - Rio de Janeiro
    há 14 anos

    Siro Darlan*

    A cultura de institucionalização de crianças e adolescentes das classes populares remonta do início da colonização brasileira. Estudo lapidar da professora Ester Arantes da PUC do Rio de Janeiro descreve que a despeito de diversos estudos terem demonstrado as graves consequências da institucionalização prolongada para o desenvolvimento psicológico, afetivo e cognitivo de crianças e adolescentes, ainda está culturalmente enraizada em nosso País a ideia de que a institucionalização de longo prazo protegeria essas crianças das más influências do ambiente em que vivem, além de proteger a sociedade de sua presença incômoda. Essa cultura de institucionalização tem impregnado, no decorrer do tempo, não apenas o discurso e a prática governamental, mas também a sociedade como um todo. Repetem-se as ações higienistas de segregação das crianças e adolescentes empobrecidas, sobretudo nas grandes cidades. Recentemente sob pretexto de proteger contra o uso do crack a Prefeitura do Rio de Janeiro jogou a rede do recolhimento sob os aplausos de grande parte da sociedade fluminense.

    Essa lógica de atendimento, ainda aceita socialmente, desqualifica os usuários e suas famílias; não respeita a individualidade, as potencialidades, nem a história do usuário; não preserva os laços familiares e comunitários; revitimiza, ao invés de reparar; viola o direito, ao invés de proteger. Além de desrespeitar o direito à convivência familiar e comunitária, prioridade constitucional.

    Foi apenas após a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que crianças e adolescentes passaram a ser concebidos como sujeitos de direito, em peculiar condição de desenvolvimento. O encaminhamento para serviço de acolhimento passou a ser concebido como medida protetiva, de caráter excepcional e provisório, voltado ao superior interesse da criança e do adolescente e aplicada nas situações previstas no Art. 98. A lei que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal assegurou, ainda, o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, prioritariamente na família de origem e, excepcionalmente, na família substituta.

    A promulgação do ECA buscou romper com essa cultura da institucionalização ao garantir a excepcionalidade da medida, estabelecendo, ainda, que a situação de pobreza da família não constitui motivo suficiente para o afastamento da criança e do adolescente do convívio familiar. De modo a fomentar as ações de fiscalização e controle social, o estatuto passou a exigir a inscrição das entidades que ofertassem programas de abrigo no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e estabeleceu princípios para a organização desses serviços.

    O direito à convivência familiar e comunitária e a igualdade entre filhos biológicos e adotivos já havia sido assegurado na Constituição Federal.

    Também foram estabelecidos, com base na legislação pátria e os tratados internacionais, com destaque para a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança alguns princípios que devem nortear esse direito fundamental:

    I - preservação dos vínculos familiares;

    II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem;

    III - atendimento personalizado e em pequenos grupos;

    IV - desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;

    V - não desmembramento de grupos de irmãos;

    VI - evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;

    VII - participação na vida comunitária local;

    VIII - preparação gradativa para o desligamento;

    IX - participação gradativa para o desligamento.

    O Congresso Nacional, após amplo debate com os mais diversos setores interessados na implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente e no aperfeiçoamento dos instrumentos legais para efetivar os direitos da criança e do adolescente festejaram quando, com a sanção da Presidência da República, passou a vigorar a lei que altera o Estatuto da Criança e o Código Civil, estabelecendo critérios e regulamentando as fases e etapas (colocação em abrigos) do processo de adoção de crianças e adolescentes no Brasil.

    A nova legislação, que reúne dezenas de dispositivos, merece um contínuo e permanente debate, constituindo-se como um verdadeiro desafio para a sociedade brasileira.

    A nova Lei da Adoção faz uma proposta para acelerar os procedimentos de adoção no País e estabelece novos critérios. As alterações têm como principal objetivo assegurar o direito das crianças e adolescentes ao convívio familiar e comunitário. A adoção aparece apenas em último caso, quando não há possibilidade de se manter a criança junto à família natural ou ampliada. Ainda nesse sentido, priorizam-se as famílias acolhedoras em detrimento dos abrigos. O tempo de permanência nestes locais, por sua vez, deverá ser de, no máximo, dois anos. Durante esse período, a criança deve ser avaliada a cada seis meses.

    A nova legislação permite ainda que a adoção seja feita por pessoas com mais de 18 anos. Em casos de adoção conjunta, é permitido que os adotantes comprovem apenas uma relação de união estável. A adoção internacional também é prevista, mas só será admitida quando não houver brasileiros habilitados no Cadastro Nacional de pais adotantes. Crianças indígenas ou remanescentes de comunidades quilombolas têm a adoção garantida apenas por integrantes das próprias comunidades. Alguns pontos polêmicos, como a adoção por casais homoafetivos, não foram discutidos, no que ficou incompleta. A nova lei reforça os princípios legais e aprimora os mecanismos que já eram previstos mas possibilitavam práticas equivocadas de adoção.

    Uma prática que costumava ocorrer de forma errada antes da nova lei era o afastamento da criança da família pelo Conselho Tutelar sem procedimento judicial contencioso. Isso porque a retirada de uma criança do seio familiar deve prever a acusação formal contra os pais e a instrução para a comprovação desta, além de garantir o contraditório e a ampla defesa das partes interessadas. Os procedimentos que regulavam o afastamento não tinham essa finalidade e perduravam por tempo desnecessário. Agora, a criança só poderá ser retirada da família sem autorização judicial se for constatada situações de emergência, tais como violência, negligência ou abandono.

    Reforça-se que os abrigos devem retomar o caráter de brevidade e excepcionalidade como está previsto na lei. Da forma como estava sendo praticado, os abrigos eram tidos como a resolução dos problemas sendo que muitas vezes, na verdade, eles acabavam criando problemas ainda maiores. As decisões de afastamento da criança da família deverão ser debatidas pelo administrador e pela sociedade no âmbito dos Conselhos de Direito com elaboração de planos e políticas públicas vão ser desenvolvidas a partir da nova lei para a reaproximação da família, já que protegê-la é dever do poder público e da sociedade.

    Criou o legislador o mecanismo de orientação dos casais que querem fazer a adoção e gestantes que desejam abrir mão da guarda dos filhos. O serviço de atenção às gestantes e adotantes, entretanto, já deve estar estruturado e organizado pelo poder municipal para que o judiciário possa desempenhar essa função. Insiste ainda na previsão de recursos para o investimento em equipes interdisciplinares, que são o ponto chave para o processo de convivência familiar. A interdisciplinaridade é essencial para acabar com a cultura que foi criada de que a família de origem é ruim enquanto a nova é a salvadora.

    A lei prescreve a necessidade do fortalecimento do vínculo familiar, uma vez que a maior causa de abrigamento é a pobreza e a miséria. Então, se já houvesse programas sociais que atendessem às necessidades das famílias pobres essa norma nem seria necessária. Para se dar cumprimento aos prazos fixados na lei haverá necessidade de ampliação do aparato do Sistema de Justiça e equipes técnicas em cada comarca, além de um funcionamento integrado com o Sistema de Garantia de Direitos.

    Outras questões importantes foram colocadas no novo cenário jurídico, tais como a condição econômica e social de inúmeras crianças, adolescentes e suas famílias que ainda fazem parte de um enorme contingente de exclusão, fora da lógica da cidadania, tem se constituído um dos principais fatores de incremento da chamada condição de abandono que, por conseguinte, tem servido para alimentar os cadastros de adoção.

    O Estatuto da Criança e do Adolescente, através do Artigo 23 já estabelecera que a falta de condições econômicas da família natural não pode justificar e fundamentar um processo de destituição de poder familiar por parte do Poder Judiciário.

    A preocupação de assegurar-se uma família substituta em casos de configurado abandono da criança leva a existência de uma possível contradição quando se verifica que este dispositivo do ECA está sendo superado por uma nova ordem de concepção de famílias substitutas é uma importante questão que devemos sempre considerar quando tratamos de processos de adoção.

    Efetivamente não podemos resumir a política de proteção do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes ao aprimoramento do processo de adoção, tendo a colocação em abrigo uma etapa a ser superada com prazos rígidos estabelecidos na lei e um regime de responsabilidade compartilhada por todos os agentes de garantia de direitos.

    O ponto focal deste problema social que ora debatemos está no campo da responsabilidade coletiva do Poder Executivo e da sociedade civil, organizada, propriamente na formulação em todas as suas instâncias (nacional, estadual e municipal) de políticas e programas públicos que fortaleçam a família, não como um elemento primário de controle social, mas acima de tudo como um direito da criança e do adolescente em viver num ambiente saudável que lhe garanta o pleno desenvolvimento.

    O cenário do abandono e da falta de execução dessas medidas encontra dados que de acordo com o Cadastro Nacional de Adoção, existem cerca de 80 mil crianças e adolescentes institucionalizadas em abrigos, enquanto que, aproximadamente 23 mil pessoas estão inscritos no cadastro de adotantes habilitados. É necessário dotar as varas da infância e da juventude de pessoal capacitado para realização de uma vigilância constante nos abrigos para evitar que as crianças permaneçam lá mais do que o necessário e fixado na lei. Impõem-se a realização de audiências pelos juízes e promotores nas unidades de abrigos para acompanhar e reavaliar o cumprimento da medida protetiva.

    Nesta missão institucional apontada pelo legislador, importante destacar a garantia da criança e do adolescente de serem ouvidos e de seu superior interesse ser considerado para a consolidação da constituição do processo de adoção como estabelecido pelo Artigo 28 da referida legislação.

    A primazia de que grupos de irmãos serão adotados necessariamente pela mesma família é uma importante medida para a preservação da identidade social das famílias naturais.

    Se for realista a lei quando permite que divorciados e separados judicialmente possam adotar crianças e adolescentes, mostra-se conservadora quando não explicitou o reconhecimento da adoção para casais homoafetivos, caso que só autoriza a habilitação de uma pessoa independente de seu estado civil no processo de adoção.

    A garantia do acesso às informações sobre a família natural da criança ou adolescente é um avanço que foi muito bem destacado em artigo recente da lavra da desembargadora Letícia Sardas.

    O combate à institucionalização de crianças em entidades de acolhimento se apresenta com a necessária formulação de um plano individual para as crianças e adolescentes nos abrigos, estabelecendo prazos de permanência e metas de inclusão social são um importante contra ponto ao histórico processo de institucionalização por tempo indeterminado que vige no Brasil desde o século XVI.

    O desafio agora que se coloca é operacionalizá-la frente ao sistema de garantia como o direito à convivência familiar de crianças e adolescentes no Brasil e não como pretexto de aprimoramento da política de institucionalização em abrigos.

    Merece, pois, destaque a redação que a lei introduziu no Artigo 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente: mobilização da opinião pública para a indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade. É, pois com esse objetivo que se devem acionar todos os meios de comunicação de massa para chamar a sociedade ao debate na busca de soluções que garantam às crianças esse direito a uma família, cuidando prioritariamente de promover políticas públicas de apoio e orientação às famílias originárias, sem perder de vista a urgência dessas providências para que possa as autoridades competentes definir em breve espaço de tempo se foi esgotadas essas tentativas para que se propiciem a colocação em família substituta.

    *Siro Darlan é desembargador, membro da Associação Juízes para a democracia e do Instituto dos Advogados do Brasil.

    Artigo publicado no Jornal do Commercio, em 30 de novembro de 2009.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/artigo/2023112

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